Vejo muitas vezes as pessoas idealizando seus ancestrais: ancestrais que parecem muito pouco humanos para mim: sem erros, sem defeitos, sem falhas de caráter. Todos bruxos (!), todos sábios, tudo muito idealizado.
Não podemos deixar de lado que nossos ancestrais eram, antes de tudo, humanos. Com erros e acertos. E o que os torna mais incríveis e maravilhosos é exatamente isso: capazes de erros e acertos, eles conseguiram sobreviver e traçar um caminho.
Quando estudei mitologia, aprendi que o valor maior do Herói reside em sua capacidade de errar, que permite que nos aproximemos dele: não dá para almejar em vida a perfeição de um Deus. Mas o herói, sendo humano, errando, tendo fraquezas, consegue prodígios, consegue ser virtuoso. Podemos portanto nos espelhar nele: apesar dos nossos defeitos, podemos encontrar nos heróis ( e nos nossos ancestrais) um exemplo de que diante da adversidade e da falha, ainda assim somos geniais.
Minha bisavó era louca. Conheci dona Mercedes quando o mundo dela era toldado pela esquizofrenia. Hipocondríaca, e um pouco malvada. Culpava os filhos pelos problemas que teve na vida, e fez cada filha ter um casamento doloroso de algum modo, como se isso compensasse seu sofrimento. Acha que tenho menos orgulho dela por isso? Minha bisa era uma mulher linda. Era inteligente demais, genial mesmo. Em um mundo de gente ignorante, ela era formada. E em algo que a tornava poderosa a seu modo: era parteira. Criou os filhos transformando miséria em fartura. Enlouqueceu quando o marido a proibiu de continuar na sua profissão. Inteligência demais, tristeza demais, desencadearam a loucura, que foi se instalando devagar. Minha avó trabalhava fora, ela cuidou do meu pai. Quando minha mãe estava grávida, ela de olhar sua barriga, do outro lado do quintal, disse que eu seria menina, mas nasceria em posição de menino (todos diziam que era menino), e que nasceria atrasada. Sem minha mãe dizer, ela disse quando era a data prevista do meu nascimento. Uma mulher de fé, tinha uma relação toda especial com a morte. Quando minha mãe foi ajudar a vestir seu corpo, encontraram dentro do guarda roupa toda a roupa que ela mesma tinha escolhido e deixado preparada para o enterro, desde a anágua até o turbante (ela sempre usava lenços bonitos na cabeça).
Lembro de seus olhos meio cegos me olhando, olhando para dentro de mim, no mais fundo. Era miudinha mesmo perto de mim, que sou pequena.
Acho que o que mais amo nessa mulher tão contraditória é sua profunda humanidade. Acho que é isso que resume a minha relação com meus ancestrais: como eu, eles eram falhos, humanos. Posso aprender com eles: seus erros podem evitar que eu cometa os mesmo erros. Seus acertos iluminam o meu caminho. Não é preciso que eu idealize meus ancestrais: minhas ancestrais não era pagãs. Mas eram poderosas sim, ao seu próprio modo, dentro de suas fés e tradições, algumas das quais escolhi honrar em memória delas.